sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

"Corri para o Rodrigo, abracei-o com força, beijei-o com desespero, Rodrigo, Rodrigo!... Ela já sabe, não quero que mude nada, não quero!
O domingo luminoso. Ele montou na moto. Montei atrás, agarrada na sua cintura, não deixe, meu Deus não deixe ele ir embora! Fez um cumprimento respeitoso na direção do casal de velhos que nos olhou com reprovação. Acelerou o motor. 'Vovó nazista vai ter um impacto com a minha elegância, veja minha gravata é assinada, Jacques Fath!'.
A gravata não fazia sentido com a roupa desbotada nem com os sapatos de andejo, com prováveis furos nas solas. Lembrei-me do primeiro dia em que nos vimos, a capa preta. O guarda-chuva. Fiquei rindo e chorando e beijando seu paletó amarrotado, cheirando a morfo. 'Mas Aninha, o que ela poderá fazer?'."

Lygia Fagundes Telles. O Espartilho. In: A Estrutura da Bolha de Sabão.

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

"Chovia. Fiquei no alto da escadaria da igreja, olhando a rua. Foi então que Rodrigo veio me oferecer um guarda-chuva. Você estava na missa? Perguntei e ele riu e não respondeu. Em romances e no cinema eu já tinha visto demais a fórmula fácil de dizer, Que extraordinário! Tenho a impressão de que já nos conhecemos há um tempo.
Não tive a impressão, tive a certeza: ele apareceu de repente e me ofereceu o guarda-chuva. Deixei-me levar com a mesma naturalidade com que foi conduzindo. [...] Sua mão segurava meu braço com algum desprendimento, permitindo que me desvencilhasse se quisesse. Não quis. Fiquei completamente perturbada quando o encarei mais de perto e tive uma outra certeza, a de que seríamos amantes.
Ainda uma vez, perguntei-lhe, mas se não estava na missa, onde estava? Ele rio o riso contagiante, 'Você faz perguntas como um detetive'. Vestia um elegante impermeável preto mas o guarda-chuva era velhíssimo, da pior qualidade. Entramos num café 'Vou fazer  seu  retrato assim mesmo como está, de pulôver vermelho e meio vesguinha, você é meio vesguinha', disse e pediu um conhaque. [...] Era pintor mas a sua verdadeira paixão era o Jazz."

Lygia Fagundes Telles. O Espartilho. In: A Estrutura da Bolha de Sabão.
Lições de guerra - Jornal Cruzeiro do Sul

"A guerra estava longe, disso eu também sabia. Mas havia os jornais. As revistas. Os documentários nos cinemas. O rádio com aquele locutor histérico metralhando as informações. Milhares de judeus de mãos úmidas estavam sendo massacrados. Lá longe. Chegavam até nós os horrores que aconteciam dentro e fora das cidades mas tudo de mistura com o anúncio de vitórias retumbantes. Derrotas. E os hinos exaltados. As bandeiras. Passei a detestar os jornais. A evitar o noticiário no rádio. Fechei-me no quarto com meus livros. com meus discos. Ouvia música e lia, lia sem para. [...] Nos feriados, metia-me em cinemas com os meus chocolates, mas na hora dos documentários de guerra, fechava os olhos"

Lygia Fagundes Telle. O Espartilho. In: A Estrutura da Bolha de Sabão.
"Tinha quatro anos mais do que eu, cursava vagamente um vago curso de admissão, pintava, ouvia jazz e ganhara uma bolsa de estudos para Irlanda. Por que Irlanda? lembrei-me de perguntar. Ele ficou pensando. Os cabelos louros eram crescidos, o que fazia  as pessoas estranharem, mas como um jovem tinha cabelos compridos assim? A guerra não ensinara o corte rente, severo? A moto também despertava curiosidade, diferente das outras que já começavam a aparecer. 'Sou um trota-mundos', disse. 'Calhou de ser na Irlanda, então Irlanda! Vai comigo Aninha? Mas quero fazer antes  seu  retrato.' Falava muito nesse retrato e nas viagens fabulosas que faríamos montados na moto. Ou num jipe. Eu sabia no fundo do coração que não ia haver nem retrato nem viagem. Mas era uma alegria participar dos seus planos, discutir esses planos

Lygia Fagundes Telles. O Espartilho. In: A Estrutura da Bolha de Sabão.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

"Às vezes digo a mim mesmo: 'Seu destino é sem exemplo; você pode estimar aqueles que são felizes, e ninguém ainda foi torturado como você'."

Goethe. In: Werther

"Sobre os nossos ombros  todas as cruzes do mundo e as fogueiras da inquisição e os judeus mortos e as torturas e as juntas militares e a prostituição e doenças e bares e drogas e rios podres e todos os loucos bêbados e suicidas desesperados sobre os meusteusnossosombros"


Caio Fernando Abreu. A quem interessar possa. In: Caio 3D.
"Mas foi no amor que descobri o quanto era mesquinha, egoísta, de um egoísmo feito mais de tristeza do que de outra coisa. Já me confessara a tantos padres mas a verdadeira confissão fiz a ele, Sou ruim, covarde, não te mereço! Ele me acariciava: 'No dia em que ficar de bem com você mesma, então vai ser formidável! Eu também andei muito tempo assim meu inimigo mas passou. Somos muito jovens, Aninha, fortes como os bois que não sabem a força que têm... Acabou a guerra mas logo vai começar outra. E quando não tem guerra tem guerrilha. [...] O negócio é não se amarrar em nada, ficar com os braços livres para dançar, brigar, amar - Ah! Ana Luisa Ferensen Rodrigues. Sabe que tem um nome lindo? Mas tira essa franja , chega de se esconder!'.
Assim como escondi minha testa usei de todos os estratagemas para esconder o meu pobre amor. Para esconder principalmente a esperança". 

Lygia Fafundes Telles. O Espartilho. In: A Estrutura da Bolha de Sabão.