sábado, 5 de outubro de 2013


Os delicados preferem morrer – escreveu C. D. A. Mas os delicados aos quais se refere o poeta não são aqueles que apanham a luva que caiu, no tempo em que se usava luva. Ou que cedem a poltrona na sala repleta ou que seguram a porta do elevador enquanto as senhoras estão saindo, não se trata dos delicados dos manuais de boas maneiras mas de um tipo de delicadeza que revela a falta de vocação para a vida. Os delicados podem ter vocação para o piano. Para o teatro. Para a poesia. Para o magistério. Vocação para a máquina, H. O. era um excelente relojoeiro. S. V. era outro delicado, um físico raro que estudava a estrutura da bolha de sabão. Mas nenhum deles com vocação para viver. Com toda a sua vitalidade, o moço do trapézio voador que só voava sem rede também era um delicado, minha mãe tapou meus olhos mas pela fresta negra dos dedos – ela usava luva – vi o corpo de giz branco ir se fazendo vermelho na lona do picadeiro, ele queria isso, disse o gerente do circo. Ele esperava por isso. Minha colega de Academia não contava as pílulas dos tubos que ia engolindo, um primo míope tirava os óculos para não ver o sangue enquanto ia cortando os pulsos com gilete azul – todos os delicadíssimos saindo sem ruído pela porta da morte que é a mais fácil. Sem olhar para trás.
(Lygia Fagundes Telles, in A Disciplina do Amor)

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