quarta-feira, 14 de setembro de 2011

A Bela e a Fera

"Bem, então saiu do salão de beleza pelo elevador do Copacabana Palace Hotel. O Chofer não estava lá. Olhou o relógio: eram quatro horas da tarde. E de repente lembrou-se: tinha dito a 'seu' José para vir buscá-la às cinco, não calculando que não faria unhas dos pés e das mãos, só massagem.
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Assim achou que era maravilhoso e inusitado ficar de pé na rua - ao vento que mexia com os seus cabelos. Não se lembrava quando fora a última vez que estava sozinha consigo mesma. Talvez nunca. Sempre era ela - com outros.
[...]
Um homem sem uma perna, agarrando-se numa muleta, parou diante dela e disse:
- Moça, me dá um dinheiro para eu comer?
“Socorro!!!” gritou-se para si mesma ao ver a enorme ferida na perna do homem. “Socorre-me, Deus”, disse baixinho.
[...]
Ela espantada: como praticamente não andava na rua – era de carro de porta à porta – chegou a pensar: ele vai me matar? Estava atarantada e perguntou:
- Quanto é que se costuma dar?
- O que a pessoa pode dar e quer dar - respondeu o mendigo espantadíssimo.
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Mas alguma coisa que era uma avareza de todo o mundo, perguntou:
- Quinhentos cruzeiros basta? É só o que eu tenho.
O mendigo olhou-a espantado.
- Está rindo de mim, moça?
- Eu?? Não estou não, eu tenho mesmo os quinhentos na bolsa...
Abriu-a, tirou-lhe a nota e estendeu-a humildemente ao homem, quase lhe pedindo desculpas.
O homem perplexo.
E depois rindo, mostrando as gengivas quase vazias:
- Olhe – disse ele -, ou a senhora é muito boa ou não está bem da cabeça... Mas, aceito, não vá dizer depois que roubei, ninguém vai me acreditar. Era melhor me dar trocado.
- Eu não tenho trocado, só tenho essa nota de quinhentos.
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Pôs-se então a olhar para dentro de si e realmente começaram a acontecer. Só que tinha os pensamentos mais tolos. Assim: esse mendigo sabe inglês? Esse mendigo já comeu caviar, bebendo champanhe? Eram pensamentos tolos porque claramente sabia que o mendigo não sabia inglês, nem experimentara caviar e champanhe. Mas não pôde se impedir de ver nascer em si mais um pensamento absurdo: ele já fez esportes de inverno na Suíça?
Desesperou-se então. Desesperou-se tanto que lhe veio o pensamento feito de duas palavras apenas “Justiça Social.
Que morram todos os ricos! Seria a solução, pensou alegre. Mas – quem daria dinheiro aos pobres?
De repente – de repente tudo parou. Os ônibus pararam, os carros pararam, os relógios pararam, as pessoas na rua imobilizaram-se – só seu coração batia, e para quê?
[...]
O mundo gri-ta-va!!! Pela boca desdentada desse homem.
A jovem senhora do banqueiro pensou que não ia suportar a falta de maciez que se lhe jogavam no rosto tão maquilado.
[...]
Teve vontade de gritar para o mundo: “Eu não sou ruim! Sou um produto nem sei de quê, como saber dessa miséria de alma.”
[...]

Tomava plena consciência de que até agora fingira que não havia os que passam fome, não falam nenhuma língua e que havia multidões anônimas mendigando para sobreviver. Ela soubera sim, mas desviara a cabeça e tampara os olhos. Todos, mas todos – sabem e fingem que não sabem. E mesmo que não fingissem iam ter um mal-estar. Como não teriam? Não, nem isso teriam.
[...]
Eu sou o Diabo, pensou lembrando-se do que aprendera na infância. E o mendigo é Jesus. Mas – o que ele quer não é dinheiro, é amor, esse homem se perdeu na humanidade como eu também me perdi.
[...]

Nunca mais seria a mesma pessoa. Não que jamais tivesse visto um mendigo. Mas – mesmo este era em hora errada, como levada de um empurrão e derramar por isso vinho tinto em branco vestido de renda. De repente sabia: esse mendigo era feito da mesma matéria que ela. Simplesmente isso. O “porquê” é que era diferente. No plano físico eles eram iguais. Quanto a ela, tinha uma cultura mediana, e ele não parecia saber de nada, nem quem era o Presidente do Brasil. 
[...]
Eu – estou brincando de viver. No mês que vem ia a New York e descobriu que essa ida era como uma nova mentira, como uma perplexidade. Ter uma ferida na perna – é uma realidade. E tudo na sua vida, desde quando havia nascido, tudo na sua vida fora macio como pulo do gato"

Clarice Lispector. A Bela e a Fera ou a Ferida Grande Demais. In: A bela e a Fera.

Um comentário:

Anderson Dias disse...

O meu conto favorito da minha escritora preferida! Adoro a maneira como a Clarice trabalha a questão da justiça social e toda a relação de alienação do sujeito. Nesse conto observamos o extremo da 'bipolaridade' social.