quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

"Como nascem as estrelas"

Ela acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam. Acreditava mais ainda, acreditava que podia ser feliz, mesmo criança era capaz de ter pensamentos complexos, e acredite ela mesma era complexa. Muito esperta ela sabia a hora certa de falar coisas inteligentes, ou melhor...coisas que os adultos achavam que eram inteligentes para uma criança de sua idade. Desde muito cedo detinha-se a ler livros muito complexos, livros considerados de gente grande. A verdade é que ela não conseguia passar do plano superficial do texto, lia o suficiente para entender o enredo, para depois contar com grande satisfação para os mais velhos, os quais a olhavam com admiração e sorriso. Mas amor mesmo, ela sentiu quando conseguiu entender mais tarde, o que aqueles contos traziam por trás de suas palavras tão bem arrumadas, e relendo algumas obras ria de si mesma. Não lembrava exatamente o que sentiu ao entender que Dom Casmurro não era tão linear assim, e que a pressa com que lia atropelava pela metade os diversos sentidos do texto.





Entediava-se em olhar da janela de casa as pernas que vem e vão “para que tanta perna, meu Deus?” pensava ela, tão fartas, tão cansadas. Gostava de atribuir uma nova função aquela rua, então olhava fixamente para os ladrilhos da Cidade Velha, em uma rua inacessível a todos os pensamentos, com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, perdia-se em pular de um para o outro, sem poder cair, sem poder se desequilibrar, porque no fundo acreditava no mundo, acreditava em si, e brincava, caminhava, corria para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente.




Na época de verão propriamente dito, abria a janela de par em par, respirava fundo como se quisesse sentir todos os cheiros de uma só vez. Gostava da luz, sentia a liberdade entrar em casa, entrar dentro de si. Sentia a natureza em todas as fibras. Aquele dia era lindo. Um sol mansinho, como se nascesse naquele instante, cobria as flores e a relva. Eram quatro horas da tarde. Ao redor o silêncio. Sua imaginação lhe permitia ir além, viver lhe ultrapassava qualquer entendimento. Então se debruçava sobre a janela, imagina...imaginava...criava...recriava...sorria sozinha, falava sozinha. Nesse momento era permitido fabular, ninguém a tomaria como mentirosa, e sim como esperta, criativa. Divertia-se em imaginar que por além daquela janela existia um rio, com um navio, de um sheik muito rico, dono de terras e petróleo, vindo das histórias de sherazade, digno realmente de mil e uma noite, de princesas e reinos. Este vinha lhe pedir conselhos de como tratar suas mulheres, e ela esperta como era, passava hooooras lhe dando conselhos falando com propriedade, o sheik a olhava com admiração prestando atenção em tudo o que ela dizia, porque tudo, exatamente tudo era muito importante. Depois de compreender o ensinamento, ele se despedia dela, lhe deixava muitas joias, voltava feliz para o seu navio. Ela ria, então pensava “lógica pra que lógica?” “quem disse que isso tinha lógica?” Então achava melhor imaginar, em vez de navio, um tapete mágico. 
 
Assim, passava os dias, as tardes a brincar, a se divertir consigo mesma. Criando, recriando, e fabulando. Sua histórias não começavam com “era uma vez...” como se espera de uma criança, nesse ponto ela se diferenciava das demais meninas de sua idade, e sabia disso, só quem não sabia era a professora que lhe exigia no começo de sua histórias o “era um vez...” o que ela fazia só pra agradar, algo que era quebrado sem coesão nem coerência, algo mais ou menos assim: “Era uma vez...portanto a menina era feliz” Escrevia assim para irritar a professora, gostava de escrever do seu jeito, à sua maneira, e nas suas histórias não tinha “era uma vez...”. Nunca ganhava os concursos de redação da escola, até o dia em que mudou de instituição, escreveu, e sua nova professora lhe percebeu a sensibilidade, sua sensibilidade incomodava sem ser dolorosa, como uma unha quebrada, e se quisesse podia permitir-se o luxo de se tornar ainda mais sensível, ainda podia ir mais adiante...

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